Uma ameaça chamada Cerveja Artesanal
Nos últimos anos tem havido um crescimento assinalável na produção e procura de cerveja artesanal um pouco por todo o mundo. Por outro lado as grandes marcas ditas industriais sofrem quebras nas vendas. Será a cerveja artesanal uma ameaça real para as grandes marcas?
Li ontem uma notícia sobre a estreia de um novo anúncio da cerveja Super Bock que será exibido nos canais de televisão generalistas e de cabo em Portugal. Rodado numa antiga destilaria portuguesa, o anúncio apresenta uma linha de cervejas “artesanais” e pretende dar a conhecer o carácter histórico e artesanal com que as cerveja são produzidas desde a origem da marca. É exactamente o tipo de anúncio que irrita um pouco alguns apreciadores de cerveja artesanal, especialmente os que estão melhor informados sobre as tendências e jogadas empresariais do sector. Vou explicar esta minha afirmação um pouco mais tarde.
Embora a produção de artesanal de cerveja nunca tenha deixado propriamente de existir em alguns países, mesmo que a uma escala muito pequena ou só para consumo próprio, a realidade é que devemos reconhecer o mérito dos Estados Unidos pelo papel fundamental na ainda recente popularização desta prática e principalmente pela criação de um mercado. Para além de terem contribuído para o inegável aumento da variedade e qualidade da oferta, também fomentaram um espírito de inovação e comunidade muito próprios deste “movimento”. Os norte-americanos descobriram que a cerveja podia ser muito mais do que a oferta industrial e quase sem sabor a que estavam habituados. O resto do mundo gostou do que viu e deixou-se influenciar. E ainda bem que assim foi.
O consumo de cerveja artesanal nos EUA (e não só) tem crescido consideravelmente nos últimos anos, contrastando com o decréscimo de vendas das grandes marcas líderes de marcado. A própria Anheuser-Busch, detentora de praticamente metade do mercado norte-americano, reconhece1 que não esteve muito atenta ao que se passava e não terá antecipado o crescimento e relevância do mercado artesanal. Para combater este problema, recorre àquilo que é típico das empresas de grande dimensão: a publicidade, campanhas de marketing, compra de empresas concorrentes e outras abordagens agressivas que costumam envolver avultadas quantias de dinheiro. Raramente optam por aquilo que realmente interessa ao consumidor, que é a melhoria da qualidade do produto. Evitam ao máximo diminuir as margens de lucro e em vez disso preferem convencer as pessoas de que o produto é bom. É a abordagem oposta à adoptada tradicionalmente pelas marcas mais pequenas e mais artesanais.
Com a aquisição total ou parcial de cervejarias artesanais, as grandes marcas recuperam aos poucos o mercado e ao mesmo tempo tentam transmitir a ideia de serem uma espécie de benfeitores que reconhecem a qualidade daqueles produtos e que por isso decidiram “ajudá-los” a crescer. É interessante referir que nos EUA é obrigatório que uma cervejaria artesanal tenha um determinado nível de independência, por isso uma aquisição total por parte de uma empresa do sector que não seja artesanal provoca a perda do estatuto de artesanal. Como seria de esperar, os consumidores mais exigentes não gostam muito destas aquisições porque temem a diminuição de qualidade da oferta.
A outra abordagem que gostaria de referir e que me leva de volta ao assunto do primeiro parágrafo deste texto são as edições “artesanais” das marcas industrias. A razão pela qual digo que irritam alguns apreciadores da cerveja artesanal - nos quais me incluo - é porque sentem que há um abuso, uma tentativa de tentar fazer parte de algo que em muitos aspectos representa o oposto do que essas empresas são. Não nego que essas cervejas especiais podem ter uma qualidade bastante superior à oferta habitual. Acredito que sejam produzidas com recurso a ingredientes de melhor qualidade e até com o objectivo de obter o melhor sabor possível. Mas para eu aceitá-las como “cerveja artesanal”, estas teriam de representar muito mais. Teriam de significar uma diferença real na abordagem à produção de cerveja, em que o objectivo principal seria o prazer do consumidor ao invés do dos accionistas. Mas é difícil acreditar nisso quando se tratam apenas de edições limitadas. Para mim são como uma espécie de isco que abanam apenas durante algum tempo, o suficiente para chamar a atenção do consumidor e dizer-lhes “- Olhem para nós! Também somos especiais!”.
Nos países de língua oficial portuguesa o Brasil é de longe o que está mais avançado em termos de produção de cerveja artesanal. Isso é facilmente explicado pela proximidade dos EUA e pelo inegável gosto pela cerveja. Em Portugal o mercado de cerveja artesanal ainda está muito no início, mas esta campanha da Super Bock faz-me desconfiar que estiveram atentos ao que aconteceu nos Estados Unidos e, quem sabe, estarão a antecipar um futuro semelhante em Portugal. Reconheço-lhes esse mérito e percebo que têm de jogar as suas cartas.
Tento seguir com alguma atenção a evolução da cerveja artesanal no mundo. Tenho curiosidade em ver o que vai acontecer a seguir. Não tenho dúvidas de que o consumidor sairia a ganhar se o mercado de cerveja fosse composto por marcas mais pequenas em vez de colossos que monopolizam o produto em todo mundo. Acredito que ganharíamos em termos de variedade, qualidade, emprego2, enfim, em praticamente tudo. Fico à espera das cenas dos próprios capítulos.
Anúncio publicitário da Super Bock
Reportagem da ABC News sobre Cerveja Artesanal «The Big Craft Beer Movement»
Alguns factos / contexto:
- a cerveja é a bebida alcoólica mais popular do mundo e um negócio de milhares de milhões de euros
- a brasileira/belga Anheuser-Busch InBev é a maior produtora mundial de cerveja e dona das marcas globais Budweiser, Stella Artois e Corona, das marcas internacionais Becks, Leffe, Hoegaarden e de um grande lote de marcas locais, em que destaco a Bud-Light nos Estados Unidos e a Skol, Brahma e Antarctica no Brasil.
- a SABMiller é a segunda maior produtora de cerveja do mundo (em termos de lucro) e a grande rival (e única?) da A-B InBev. Ao longo dos anos as duas empresas têm feito conversações no sentido de se fundirem. Se isso acontecer, dominarão a esmagadora maioria do mercado mundial.
1 ver reportagem “The Big Craft Beer Movement” (aos 2 minutos e 37 segundos) 2 pela sua baixa eficiência e industrialização, os produtores de cerveja artesanal tendem a empregar mais pessoas do que na produção industrial para a mesma quantidade de produto.
